segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

pequenas mortes

Resgatei-me do útero da minha mãe há quarenta anos e desde então sou um doente terminal de sensações. Dou-me seis meses que adio para um ano, por vezes dois, às vezes uma alegria inesperada atira-me para cinco anos de prazo e assim adiei o término quarenta anos. Passeio-me frequentemente em pontes, enquanto o vento me empurra para o rio, então perscruto com vertigens os meus pedaços esmagados contra a água, num burburinho de colisão que afastaria gaivotas num dia de Sol. Encontro pessoas apressadas na rua que me evitam porque me esqueço dos cuidados básicos propositadamente, a minha banheira serve-me de campo de plantação onde cultivo verduras para as sopas e saladas. Cedo descobri que a ausência de hábitos de limpeza dificulta a iniciativa comunicativa dos transeuntes, tomando-me por um vagabundo perigoso, evitam os diálogos e projectam-me olhares fugazes esperançosos de que a minha calamidade não provoque doenças nem os atropele em pedidos de esmola.
A minha mulher é uma antiga suicida que conheci no hospital psiquiátrico e se aproximava das janelas a inquirir os visitantes que, cientes de estarem num local de loucos, se afastavam do seu olhar desconfortáveis, certos da sua malignidade e de esta possuir um revólver ou uma memória eidética que lhe permitisse recuperar as suas faces assim que se ausentasse do hospital e decapitá-los sem estremecimentos. A única mulher bonita num colete-de-forças.
Três meses depois encontrei-a novamente no hospício, fazia visitas periódicas, pelo que combinamos simular tentativas de suicídio todas as sextas-feiras, aumentando a estadia em camas paralelas. A minha loucura exercitou-se no acometimento da sua fraqueza, enquanto ela me desprendia de amarras endógenas de desinteresse pela vivência do comum, de dias desesperadamente similares a ontem e amanhã.
Agora encontro-a na minha cama de manhã, a única mulher bonita num colete-de-forças, e risco os dias até à próxima tentativa de suicídio porque o meu prazo continua a exasperar-me. O ontem contínuo. E salto de pontes e vingo-me em artérias e sacudo as entranhas e revisto-me de comprimidos que me deprimem o estômago em úlceras e telefono-lhe que venha, que estou inteiro, que simule uma pequena morte e partilhe a cama no hospital porque o meu amor é uma cama de hospital partilhada e ela é a única mulher bonita num colete-de-forças.