quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Carmélia cheia de graça


Nos meus treze anos, quando ainda acreditava que o amor das novelas se materializava na vida real – gosto da expressão vida real, como se houvesse uma vida irreal que mais tarde me apercebi tratarem-se das horas perdidas a contemplar sonhos disfarçados de nuvens no tecto da rua – em puxões de cabelo e levantar a saia das raparigas da minha escola, conheci a Carmélia no extremo da sala, com um laço vermelho no centro da cabeça, como um enorme presente que eu deveria desvendar.
O meu primo Joaquim que sabia tanto do futebol que não aprendia nada na escola, mais velho dois anos, partilhava comigo a carteira e disse-me ao ouvido que a Carmélia no final do ano seria sua namorada, pelo que assumi que o meu primo, um rapaz dos seus um metro e setenta, que enfiava os ganhadores do futebol nos caixotes do lixo, a lembrar-lhes as suas raízes, teria razões para afirmá-lo. Do alto da minha magreza, sosseguei a vontade de lhe levantar as saias enquanto corria disparado pelos corredores da escola. De manhã, quando a Carmélia chegava à escola antes do meu primo, ruborizavam-me as bochechas por não aguentar mais a água no interior da boca das frases desenhadas nas sinapses do meu cérebro tantas vezes que as decorava e todos os dias Carmélia, Carmélia, Carmélia, a lembrar-me das flores do meu jardim vermelhas, brancas, a querer oferecer-lhe uma em segredo e pedir-lhe que me deixe puxar-lhe os cabelos e correr. Entretanto o meu primo atrasado com a bola no regaço fazia-se pé acelerado na direcção da Carmélia enquanto lhe gabava os olhos, vítreos de um verde de musgo. A Carmélia nos intervalos sentava-se nas escadas a ler e o meu primo atirava contra ela a bola, sendo que ela magoada se ria.
Quando no Natal, estávamos a acabar o primeiro período lectivo, a Carmélia me pediu um lápis emprestado, quis que ela me tivesse pedido um beijo, Fernando, só um beijo Fernando, mas a Carmélia pediu-me um lápis emprestado. Foi a primeira vez que lhe falei e lhe disse: toma. (toma toma toma a ecoar) Podia ter repetido dez vezes para ter a certeza que existia um fluxo de movimento de partículas em direcção ao ouvidos da Carmélia, que bonitas eram as suas orelhas, eu que nunca me interessei por orelhas, narizes, dedos, braços, pescoços, esquecia-me das nuvens e inventava uma vida irreal de Carmélia.
No final do ano, o meu primo que era dado à manutenção das promessas, roubou um beijo à Carmélia que não afastou o rosto e eu não te pude avisar Carmélia que ele às vezes come lagartas em competições. Às vezes o meu primo cai no relvado cheio de cuspe, às vezes não lava os dentes e muito menos cede aos conselhos dos dentistas de usar o fio dentário, imagina tu Carmélia quantos refluxos de vómito terias ao saber que eu não te pude avisar que o meu primo não prima pela higiene, mas tu casaste com ele. Ele roubou-te um beijo com uma boca imunda e tu casaste com ele.
Quando na Sexta-feira fui a vossa casa e encontrei o meu lápis, passaram-se seis anos e o meu lápis. O teu filho prematuro e o meu lápis em cima da mesa, e todo eu em sinapses – quero pedir-te em casamento com o meu lápis, quero desenhar-te uma casa no tecto da rua e convidar-te para morares comigo – e tu coberta de manchas de leite, de vómito da criança prematura, dos dentes sujos do Joaquim.