quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O autocarro do Miguel Torga

Deparei-me hoje de tarde, a caminho do Hospital, com o Miguel Torga no autocarro, desconfiei da falta de declamações de poesia, tal como sempre me espanta a ausência de música, voz, camisolas sujas de tintas, canetas em riste ante folhas brancas ou blocos de notas escrevinhados repetidamente a acompanhar os artistas nos lugares onde a vida lhes corre nas veias. No entanto, rejeitando como é hábito os preceitos sociais, acedi à vontade de o perscrutar, vislumbrar uns versos amargurados entre os sulcos da testa, que desafogavam imediatamente abaixo do escorrega, agora abismal, num sorriso ao contrário. Arregacei as mangas à vontade de lhe confessar que aprecio o nome Adolfo, que me lembra Afonso em vez de Hitler; sacudi-me ainda da expressão do apreço pelo Portugal do Torga ali no autocarro, o Miguel que podia ser meu irmão, não tivesse morrido, não tivesse nascido cem anos antes. O Miguel Torga que é meu irmão de pátria, que estava no autocarro na face de um filho ou primo ou vizinho de infância a quem o rosto se colou, o Adolfo que jaz no caixão em ossos murchos, talvez ocos das térmitas, o Miguel Torga que se passeia pelas cidades sorrindo ao contrário enquanto me conta em poemas inesgotáveis que Portugal é rios e pontes, edifícios pálidos entre a luz esbatida da cidade, jardins sombreados, que Portugal foi desenhado ao lusco-fusco (bonito lusco-fusco, hei-de ensinar às crianças) e é o país do meu ventre.