terça-feira, 15 de novembro de 2011

dores de dentes


Para escrever arranco dentes com um alicate.
Os dias munem-se, como armas, da escuridão egoísta que esconde os dias. Se acordo e está Sol duvido de estar acordado. Durante o dia sou invadido por uma letargia patológica, espreito pela janela as pessoas que abandonam a farmácia com sacas pequenas de letras cor de laranja e azuladas, com receitas trocadas por medicamentos que retiram uns trocos dos bolsos e juntam uma ligeira esperança de que a apatia e a dor desapareçam com a toma. Entram nos carros mal estacionados e seguem como a vida exige, que se siga. O céu, há dois segundos, antes de começar a arrancar dentes, ainda possuía uns laivos de luz, agora é um buraco negro.
A minha vizinha da casa amarela, outrora vermelho escuro, trata da casa como um jardineiro. As mulheres enfeitam a vida como as mães o fazem às meninas. Empresto-te três laçarotes, umas meias coloridas, o cabelo solto e liso, três horas de cuidados. A arte por ser estética é feminina. A arte por ser sensibilidade é feminina. Estou a arrancar dentes por não ter sensibilidade. Provoco rivalidades por mera conveniência. As mulheres respondem a provocações com uma continuidade inesgotável. Se ouço gritos, sinto-me vivo e continuo. Penso mudar-me para uma casa próxima do hospital, se tivesse medicina nos genes teria esgotado alguns problemas da alma. A proximidade da morte torna a vida irónica, a longitude da morte torna a morte irónica. De vez em quando, os gritos não sobem à minha janela, abro as persianas e não ouço nada, o mundo calado como se fosse tarde demais para me trazer vida ao corpo murcho. Então largo as roupas com as quais dormi nas últimas três noites e rumo ao hospital onde permaneço na sala de espera ouvindo notícias duras que não me doem porque não são minhas. Chegam-me os gritos: um ranger dos dentes que não surge com alicates nem é utilizado para escrever.  Lembro-me do meu pai relatar que, numa conversa de café, enquanto conversava com um amigo sobre uma banalidade, como todas as outras, foi interpelado por um sujeito que pediu para registar a sua conversa. Os escritores usam a humanidade dos outros para encher os bolsos.
Saio do hospital com três histórias: um idoso, uma criança e um bêbedo. O bêbedo matou o avô enquanto a criança lhe segurava a mão. Ficou com a mão dada a um corpo ensanguentado, sentou-se no chão ao lado do morto enquanto esperava que as pessoas se recompusessem do histerismo e auxiliassem o idoso.
Para escrever arranco os dentes com um alicate. Da próxima vez, um tiro no pé, uma visita às urgências e um internamento: trabalho assegurado para sete meses. O céu é um buraco negro que me engole. Desfaço-me do corpo, entro no buraco negro, desdentado, onde permaneço até às próximas linhas.